18.10.2020
[Salmo 82] Salmo de Asafe. 1Deus preside a assembleia dos céus; no meio dos seres celestiais [dos deuses], anuncia seu julgamento: 2“Até quando tomarão decisões injustas que favorecem a causa dos perversos? Interlúdio 3“Façam justiça ao pobre e ao órfão, defendam os direitos do oprimido e do desamparado. 4Livrem o pobre e o necessitado, libertem-nos das garras dos perversos. 5Esses opressores nada entendem; são completos ignorantes! Andam sem rumo na escuridão, enquanto os alicerces da terra estremecem. 6Eu digo: ‘Vocês são deuses, são todos filhos do Altíssimo. 7Morrerão, porém, como simples mortais e cairão como qualquer governante’”. 8Levanta-te, ó Deus, e julga a terra, pois todas as nações te pertencem.
A quem pertence o governo das nações? Ao povo? Quem governa as nações? O governo é do povo, pelo povo e para o povo? Não! Todas as nações pertencem ao SENHOR (v. 8), inclusive o Brasil – o governo das nações é de Deus, por Deus e para Deus.
Deus, no entanto, governa através de seus servos – homens e mulheres que ele mesmo levanta –, dentre o povo, para legislar, julgar e executar ações, conforme, por exemplo, está posto no Preâmbulo de nossa Constituição Federal:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
O povo, através de seus representantes, sob a proteção (ou reinado) de Deus, governa a nossa nação nos âmbitos federal, estadual e municipal. O poder, de fato, emana de Deus.
Jesus, quando estava diante de Pilatos, em João 19.9-11, disse ao governador da província romana da Judeia – o quê? você se lembra? –, recapitule comigo (Jo 19.9-11):
9[Pilatos] Levou Jesus de volta para dentro do palácio e lhe perguntou: “De onde você vem?”. Jesus, porém, não respondeu. 10“Por que você se nega a falar comigo?”, perguntou Pilatos. “Não sabe que tenho autoridade para soltá-lo ou crucificá-lo?” 11Jesus disse: “Você não teria autoridade alguma sobre mim se esta não lhe fosse dada de cima.
Ou seja: Jesus não negou que houvesse autoridade instituída a Pilatos para governar aquela província, entretanto, em última análise, ele não a remeteu a César, mas a Deus – ou seja: a autoridade de Pilatos (pasme!) vinha “de cima”, vinha do Pai.
Paulo dirá a mesma coisa em Romanos 13. No reinado de Nero (pelo amor de Deus, aquele déspota!), o apóstolo dirá que Deus mesmo designou um governo para o bem-estar dos cidadãos do Império. Ouça, Romanos 13.1ss.:
1Todos devem sujeitar-se às autoridades [Nero, inclusive?], pois toda autoridade vem de Deus, e aqueles que ocupam cargos de autoridade foram ali colocados por ele. 2[…] o Deus que a instituiu 4[…] estão a serviço [gr. diáconos] de Deus […] 6É por esse motivo também que vocês pagam impostos, pois as autoridades estão a serviço de Deus no trabalho que realizam. 7Deem a cada um o que lhe é devido: paguem os impostos e tributos àqueles que os recolhem e honrem e respeitem as autoridades.
Em última instância, todo governo pertence a Deus. Dele emana o poder investido às autoridades governamentais (os representantes do povo). De fato, essas autoridades são diáconos, servidores públicos (sustentados pelo próprio Deus, por meio do dinheiro dos impostos). Mais uma vez: para quê Deus as investe de autoridade? Para servir. Com qual propósito? Conforme a nossa Constituição, para
[…] assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus […]
O problema é que quando nós assistimos os noticiários de TV ou lemos as manchetes das reportagens, ficamos com a nítida impressão de que, ao contrário do proposto, imperam a injustiça, a insegurança e a impiedade. Os governantes são corruptos, e corruptores muitas vezes. Onde está Deus nesse governo, no governo das nações?
O Salmo 82 se propõe a revelar onde está Deus no governo das nações. Com efeito, neste salmo, Deus é colocado como o Juiz dos juízes – aquele que julga e julgará os governantes dos povos todos. Veja:
Dos oito versículos que compõem o salmo, seis são palavras ditas pelo próprio Deus (vs. 2-7). Asafe, o autor do salmo, falou apenas no primeiro e no último versículos. Versículo 1 é o preâmbulo do salmo, e descreve a posição ocupada por Deus: “Deus preside a assembleia dos céus; no meio dos seres celestiais [dos deuses], anuncia seu julgamento”. Agora, mediante a posição ocupada por Deus (v. 1) e em face dos pronunciamentos feitos pelo SENHOR mesmo (vs. 2-7), Asafe, no versículo 8, faz sua súplica: “Levanta-te, ó Deus, e julga a terra, pois todas as nações te pertencem.”
A leitura cuidadosa dos versículos 2-7, que registram os pronunciamentos do SENHOR Deus, descortina uma época em Israel muito parecida com a que se vive em grande parte das nações atualmente: as autoridades governamentais não estavam fazendo seu trabalho, estavam negligenciando e até oprimindo os fracos, pobres e necessitados. Um comentarista bíblico (Eric Lane) argumentou que o período era aquele em que Absalão tomou o poder para seus próprios fins, não para o bem do povo.
Qualquer que tenha sido o contexto original, impressiona-me neste salmo que, conquanto não seja um texto político, ele fala diretamente à política. Um salmo para ser cantado no culto, um salmo sobre Deus e o governo das nações – um salmo sobre o bom governo e a boa governança, um salmo para a política das nações, e o povo deveria cantá-lo no culto, no culto a Deus! Impressionante!
Você consegue imaginar a cena?
O governo em Israel não ia nada bem, o rei e as autoridades reais não estavam fazendo, com justiça, o trabalho deles… e a congregação entoava esse salmo na presença do rei e de seus aliados! Seria cômico se não fosse trágico. Afinal, o simples cantar este salmo na adoração no templo em Jerusalém poderia até soar sedicioso (incitação de revolta contra o rei). Imaginem o rei e o povo cantando no templo (vs. 2-8):
2“Até quando tomarão decisões injustas que favorecem a causa dos perversos? Interlúdio 3“Façam justiça ao pobre e ao órfão, defendam os direitos do oprimido e do desamparado. 4Livrem o pobre e o necessitado, libertem-nos das garras dos perversos. 5Esses opressores nada entendem; são completos ignorantes! Andam sem rumo na escuridão, enquanto os alicerces da terra estremecem. 6Eu digo: ‘Vocês são deuses, são todos filhos do Altíssimo. 7Morrerão, porém, como simples mortais e cairão como qualquer governante’”. 8Levanta-te, ó Deus, e julga a terra, pois todas as nações te pertencem.
Você consegue imaginar?
A popularidade do rei está em baixa, a credibilidade dele está sub judicie, seus atos são injustos, e o sacerdote, de repente, começa a reger e a entoar o Salmo 82 na presença mesma do rei. Ora, o rei poderia ser linchado pelo povo!
O propósito de Deus, no entanto, não era (e nunca foi) incitar a violência, mas chamar os governantes ao arrependimento, dar-lhes a chance de realinhar as motivações do coração e as ações públicas conforme a palavra de Deus. Ademais, Deus ensina o povo sobre os princípios da boa governança, o fundamento da boa gestão pública e a forma de o povo fazer política. Veremos tudo isso na medida em que mergulharmos no salmo (hoje e no próximo domingo pela manhã, Deus permitindo).
Dividiremos nosso estudo em três partes: [1] o conselho de Deus aos governantes – vs. 1-4; [2] a crítica de Deus aos governantes – vs. 5-7; e [3] o chamado de Deus ao seu povo – v. 8. No final, faremos algumas aplicações para o nosso dia a dia.
A justiça humana deve refletir a justiça divina. No Antigo Testamento, a lei humana e a divina se mesclavam. É assim em toda a Bíblia. Nos dez mandamentos, por exemplo, vemos a esfera divina e a humana misturadas. Há mandamentos verticais e horizontais (os quatro primeiros são relacionados a Deus – não terás outros deuses, não farás para ti imagens, não tomarás em vão o nome de Deus, lembra-te do dia de sábado – são verticais; e os seis últimos, às pessoas – honra teu pai e tua mãe, não matarás, não adulterarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás – são horizontais). A lei humana se deriva da divina (ou, na ausência de Deus, qualquer outra coisa, qualquer outra fonte; não existe neutralidade). Assim sendo, o Salmo 82 começa nos mostrando que Deus está no meio dos juízes, governantes ou poderosos do povo. Versículo 1:
1Deus preside a assembleia dos céus; no meio dos seres celestiais [dos deuses], anuncia seu julgamento:
Nesta passagem, somos apresentados ao que parece ser uma cena de tribunal; no mínimo, é uma grande assembleia oficial do povo de Deus. Nesse caso, o próprio Deus convoca a sessão do tribunal – heb.: נָצַב natsab, fica em posição, toma o seu lugar. Seu povo está reunido ao seu redor. O SENHOR está no meio deles, os quais estão representados pelos seus líderes (deuses): os governantes, os juízes das nações. “Ele julga/preside no meio dos governantes”, lemos no versículo 1.
Neste ponto, é preciso que se faça alguns esclarecimentos.
A NVT traduziu o substantivo ʾelohiym (no versículo 1) como sendo “ceres celestiais”, ao passo que a ARA, acertadamente, traduziu-o como “deuses”. Está correta a ARA:’elohiym = deuses. Tanto é assim que lá no versículo 6, deste mesmo salmo, a mesma NVT traduziu como sendo “deuses” o mesmo substantivo ʾelohiym.
Portanto, Salmo 82.1 (na versão NAA):
Deus toma o seu lugar [preside] na congregação [assembleia] divina; no meio dos deuses,
Qual assembleia e quais deuses são estes? Ensina-se o politeísmo (vários deuses)? Absolutamente, não. O texto aramaico traz “juízes”. O Livro de Salmos, da Sefer, editora judaica, traz “juízes”. No hebraico, El é o nome comum para Deus. Significa “forte”. Seu plural é ’Elohym, “fortes” ou “fortíssimo”. Usa-se o termo para Deus, seres angelicais, poderosos, príncipes, reis, juízes, governantes, quem domina sobre outros. Jesus mesmo aplicou o substantivo “deuses” em Salmos 82.6 à liderança judaica (Jo 10.34). Por quê?
O ponto de Cristo era que se os governantes humanos (Sl 82.2-4) podem, em algum sentido, ser chamados de deuses (à luz de seu papel como representantes poderosos de Deus), esta designação é ainda mais apropriada para aquele que realmente é o todo-poderoso Filho de Deus: o Cristo (Jo 10.33, 35-36).
Pois bem, o Salmo 82 fala de governantes humanos, poderosos (’elohiym, deuses) que representam Deus no governo do povo, mas que estão governando com injustiça e por isso seriam julgados com a mesma impiedade (vs. 2-7).
No versículo 2, conforme anunciado no final do versículo 1 (“anuncia seu julgamento”), Deus apresenta uma acusação contra esses governantes, contra esses juízes, deuses das nações:
2“Até quando tomarão decisões injustas que favorecem a causa dos perversos? Interlúdio
Em outras palavras, Deus se levanta no meio da assembleia do seu povo e aponta para os governantes (v. 1), e diz (v. 2): “Vocês estão julgando injustamente e estão demostrando favoritismo aos ímpios.”
S.D.G. L.B.Peixoto
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